sábado, 31 de maio de 2008

Desafio aos editores

Coluna Livro&Cia, in Jornal Palavra, Rio de Janeiro, 2005
O comentário foi como um chacoalhão, uma ficha que cai e faz aquele som metálico daquelas antigas maquinetas de balas, nas quais se girava uma borboleta, até que esferas coloridas desciam até nossas mãos.

Comparando alguma coisa da qual não me lembro, mencionei, durante um estudo bíblico, a revista Sétimo Céu, entre outras revistas de fotonovelas semelhantes, quando uma jovem senhora me interrompeu com uma observação: – “Pastor, você é velho, hein!”.

Sem dúvida, eu já sabia que as fotonovelas não são mais figurinha fácil em bancas de revistas. Mas eu também sei que elas não sumiram de todo. Foram superadas por uma enxurrada de aparelhos de TV em cada casa, rica ou pobre, do país. Folhetins em preto e branco, elas também não poderiam concorrer com um sem-número de aparelhinhos portáteis de jogos eletrônicos, inclusive em telefones celulares. Mas eu não podia disfarçar o fato de que eu fui testemunha do tempo em que fotonovelas faziam sucesso. Lembro-me por exemplo, de quando menino, acompanhava minha mãe em dia de cabeleireiro e ficava uma eternidade esperando-a fazer escova, secador, manicura... Enquanto isso, folheava as revistas – em geral fotonovelas – que jorravam de algum suporte num canto do salão. E, machismo à parte, devo reconhecer que as revistas eram atraentes, variadas. Isso para não dizer que, para milhões de pessoas, era quase a única leitura. E nem importa que fosse ideologicamente alienante, uma subliteratura, de qualidade duvidosa, algumas verdadeiros dramalhões. Pessoas simples as consumiam – acompanhavam, na verdade – sem escrúpulos burgueses, como hoje se consome na TV o “Ratinho”, Gilberto Barros, Adriane Galisteu ou Luciana Gimenez, só para começar.

Mas, se essa forma de comunicação fez tanto sucesso, por quê não foi reformulada, redirecionada para segmentos remanescentes? A despeito de quatro décadas desde a transição da fidelidade fotonovelística para a tevemania, elas seriam mais atrentes que alguns livretes ou revistas de estudo bíblico.

Cheguei ao ponto: Desafio as editoras, redatores e atores a investir nesse formato. Estou certo de que isso revolucionaria as classes de Escola Dominical e os estudos bíblicos. Os recursos tecnológicos, agora mais avançados, estão disponíveis e o público seria favorável a uma renovação visual em suas revistas, a maioria questionada por professores e líderes de EBD. É hora de aliar formatos e recursos para extrair deles o que há de mais comunicativo em favor da evangelização.


LUCIANO P. VERGARA

Jornalista, professor do Seminário Teológico Betel e pastor da Igreja Metodista

terça-feira, 27 de maio de 2008

SINTO VERGONHA DE MIM - Rui Barbosa (1914)


Discurso feito no Senado Federal, no Rio de Janeiro, Capital Federal, pelo senador Rui Barbosa, ardoroso defensor da forma republicana de governo, no dia 14 de dezembro de 1914.

Sinto vergonha de mim por ter sido educador de parte desse povo, por ter batalhado sempre pela justiça, por compactuar com a honestidade, por primar pela verdadee por ver este povo já chamado varonil enveredar pelo caminho da desonra.
Sinto vergonha de mim por ter feito parte de uma era que lutou pela democracia, pela liberdade de ser e ter que entregar aos meus filhos, simples e abominavelmente, a derrota das virtudes pelos vícios, a ausência da sensatez no julgamento da verdade, a negligência com a família, célula-mater da sociedade, a demasiada preocupação com o "eu" feliz a qualquer custo, buscando a tal "felicidade"em caminhos eivados de desrespeito para com o seu próximo.
Tenho vergonha de mim pela passividade em ouvir, sem despejar meu verbo, a tantas desculpas ditadas pelo orgulho e vaidade, a tanta falta de humildade para reconhecer um erro cometido, a tantos "floreios" para justificar atos criminosos, a tanta relutância em esquecer a antiga posição de sempre "contestar", voltar atrás e mudar o futuro.
Tenho vergonha de mim pois faço parte de um povo que não reconheço, enveredando por caminhos que não quero percorrer...
Tenho vergonha da minha impotência, da minha falta de garra, das minhas desilusões e do meu cansaço.
Não tenho para onde ir pois amo este meu chão, vibro ao ouvir meu Hino e jamais usei a minha Bandeira para enxugar o meu suor ou enrolar meu corpo na pecaminosa manifestação de nacionalidade.
Ao lado da vergonha de mim, tenho tanta pena de ti, povo brasileiro!


A falta de justiça, Srs. Senadores, é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação. A sua grande vergonha diante do estrangeiro, é aquilo que nos afasta os homens, os auxílios, os capitais. A injustiça, Senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas. De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa foi a obra da República nos últimos anos. No outro regime (na Monarquia), o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o sempre, as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que, acesa no alto, guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade.


(in Obras Completas de Rui Barbosa, V. 41, t. 3, 1914, p. 86)


"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto".

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Sobre a doação de órgãos: Da obrigatoriedade à espontaneidade (Luciano Pereira Vergara, 1999)

Este artigo foi publicado em 1999, a propósito da lei 9.434, de fevereiro de 1997, regulamentada em junho do mesmo ano pelo decreto 2.268, adotando o conceito da doação presumida. A lei entrou em vigor em janeiro de 1998 e ocupou o noticiário durante meses. Uma conseqüência foi a obrigatoriedade da emissão de documentos de identidade declarando se o portador concorda com a doação de órgãos ou não.


Sobre a doação de órgãos: Da obrigatoriedade à espontaneidade

(Agência Soma)

A lei da doação compulsória de órgãos, recém aprovada no Senado — na verdade, uma invasão da livre vontade individual pelo estado, em nome do altruísmo — pode parecer uma lei magnânima em favor dos desfavorecidos pela vida. Serve-lhe de fachada o pretexto de suprir de órgãos aqueles que infelizmente deles necessitam. Distante da nobreza do gesto individual da doação, ao Estado não ocorre, porém, a sensatez de formular uma política educacional voltada para o altruísmo, capaz de incutir nas mentes o desejo de doar-se espontaneamente. Também não lhe ocorre que o “desmanche” de corpos pela via da coerção legal possa ferir consciências e afetos. Por outro lado, não há como não desconfiar das instituições públicas ou privadas que operacionalizarão o seqüestro de partes corpóreas, especialmente, se determinados órgãos alcançam maior valor no mercado paralelo.

As intervenções feitas em corpos têm sido, por muito tempo, alvo de especulações filosóficas e teológicas. Pode-se não querer subordinação à ética e à individualidade que revestem a preservação do corpo — vivo ou morto —, mas não se pode negar sua existência e sua importância histórica. Quem quiser, puder e souber manifestar em cartório sua vontade (como se fosse simples, por exemplo, a cidadãos que vivem em locais precários e desprovidos de recursos básicos da cidadania, firmar o seu desejo expresso), poderá não ter seu corpo violado. O que também significa que, novamente, apenas as camadas esclarecidas e com pleno acesso aos instrumentos da cidadania, terão a sua vontade respeitada. Quem não consentir mas não puder ou não souber como, não terá garantias de que, depois de morto, seus restos sejam preservados. Ouviremos, decerto, relatos, amiúde, de atos de corrupção ativa e passiva, quando familiares enlutados, inconformados com o saque a ser perpetrado em nome da lei, oferecerem propinas aos saqueadores ou, quando córneas consideradas nobres ou de rara beleza forem repassadas com ágio. Isto já ocorre sem essa legislação. Imagine-se o que poderá ocor-rer de posse da licitude do ato.

Não se questiona aqui o mérito da doação, que, aliás, é recomendável e para o que não há interdito bíblico ou moral. O que se indaga à consciência individual é se o Estado pode exercer tal domínio sobre a substância material do ser humano. Terá o Estado maior autoridade sobre a constituição do homem do que o próprio homem e sua família, após a morte? É lícito ao Estado determinar que tratamento dar-se-á ao corpo de um cidadão que falece? Poderá o Estado dar garantias de que esse seqüestro resguardará o respeito devido ao finado e a sua família? Aliás, como o Estado brasileiro pode dar quaisquer garantias em tantos outros assuntos, se muitos ítens básicos ainda não são de domínio de larga parcela da população?

As resistências que possam surgir à legislação da matéria, poderão ser de ordem moral ou religiosa, como os temores quanto aos níveis de consciência post mortem ou crenças quanto ao estado corpóreo no além-túmulo. Ninguém pode dizer que isto seja de menor importância num país onde é comum a violação de túmulos para finalidades místicas. Muito menos se pode tentar enfiar goela abaixo uma lei sobre tema tão controvertido, simplesmente, porque pode ser um instrumento fácil dentro de uma política de resultados, visto ser um crime a sua desobediência, mas que, nem de longe, representa um instrumento da razão sadia, que, via de regra, só é possível pela educação e conscientização.

Se o Estado quer a colaboração de seus cidadãos na busca de doadores, não a deveria obter pela coerção, mas através da conscientização, que, aliás, está atrasada, mas que teria resultados mais duradouros. Se deseja a boa vontade popular, por quê tentar obtê-la de modo arrogante? A inabilidade do Estado brasileiro para legislar sobre o que é, ou não, moral, fica patente em outras matérias. É o caso do combate ao contágio do vírus da AIDS, o HIV. Para diminuir o impacto da transmissão do vírus, o Estado vira “garoto-propaganda” da indústria de camisinhas, porque é menos complexo (e deve gerar impostos e dar empregos) do que conscientizar a sociedade sobre o erro (o que, insistentemente, não se quer denominar pecado) de uniões extraconjugais, da promiscuidade, do homossexualismo, etc. O Estado adverte sobre os riscos do alcoolismo, mas a legislação ainda é incapaz de promover os bons exemplos de sobriedade e freqüentemente se rende aos rendimentos da propaganda e da indústria do álcool. O mesmo poderíamos dizer do fumo, entre outros. De resto, fica bem claro que o Estado legisla melhor e mais rápido sobre a morte do que sobre a qualidade de vida. Ainda que pareça anacrônico, o direito à consciência e vontade é inalienável ao ser humano. Seria melhor que o Estado obtivesse a concordância do doador — em vida! — pela via mais razoável, isto é, o convencimento.

Tais questões também (e especialmente) pertencem à Igreja. Ela é estimulada por Deus a exercitar o altruísmo (Gálatas 6.9,10), em nome de sua fé em Cristo. É também a Igreja advertida a submeter-se às autoridades por “dever de consciência” (Romanos 13.1-7). Entretanto, a Igreja, não deve assistir calada aos excessos do poder humano, mas advertir ao povo (e às suas autoridades) acerca do pecado (Isaías 58.1).