quinta-feira, 15 de julho de 2010

Pé no chão

Luciano P. Vergara

Esta terra em que pisa o meu pé é, sob muitos aspectos, uma terra vã e sem valor, não é de ouro nem são preciosos os seus torrões. Sob outro modo de olhar, ela é mais que preciosa. É pátria, é solo que serve de apoio, sobre o qual está a minha casa, terra que me viu nascer e que, cessada a vida chã, há de acolher os restos do meu corpo. É na terra que se planta o alimento e sobre ele corre a água que sacia a sede de todos. É dela que vem o minério que modifica o dia-a-dia, que faz a riqueza de muitos e a loucura de gananciosos. É sobre ela que lutam soldados e mourejam grupos econômicos. Sobre esta terra sonhamos, amamos, odiamos e existimos.
No chão em que rola a bola, espetáculo e delírio de multidões, nem mesmo a grama mais cientificamente tratada esconde a aridez de um solo que tanto sangue já enxugou. A poeira levantada por manadas selvagens ou pela meninada negra que se agita atrás de uma suja bola feita de meia esconde contrastes que separam interesses milionários da extração mineral e o trânsito de pessoas comuns no varejo dos amontoamentos não urbanizados. A jabulani vai de um lado ao outro – de pé em pé – sem ligar se é campeão ou perdedor.
Enquanto a poeira sobe, a pelota pode ir, num passe, do pé de um moleque que se mete em buracos, a buscar brilhantes no interior da África, ao pé de um refugiado da fome e da guerra nos campos de chefes tribais. Ou pode ir do pé de um polígamo obá centro-africano ao pé de um pirata nos arrabais de Mogadíscio.
“Tira as sandálias dos pés!” – ecoa a voz reivindicadora, sobre um solo qualquer, da santidade do chão pisado pelo Eterno. Do outro lado do Mar Vermelho, atrás do fugitivo hebreu, salvo das águas e príncipe egípcio descoroado, um povo chora enquanto amassa, com os pés, a matéria prima que alimenta a expansão das moradas, a ocupação da terra, adensamento da metrópole. Ocultos dos palácios e debruçados sobre formas de tijolos, gemem os escravos da especulação, explorados pela vilania dos donos da terra “– Até quando, Adonai?”. E o soberano dos céus, Yahweh, determina ao pastor de Midiã: “– Volve, Moisés, o teu rosto para aquela terra e volta a ela para dizer àquele que oprime a minha herança: – Deixa o meu povo ir”.
Sobre o mesmo solo do antigo apartheid , novamente rola a esfera, para deleite de negros, brancos e toda raça de gente. Enquanto ela descreve nos estádios o seu destino, a poeira continua a subir, seja das minas e garimpos, seja dos terreiros de chão pisado, seja dos tijolos da humilhação. Seus heróis podem usar chuteiras milionárias ou óculos cravejados de jóias. Posam para o brilho que espoca das câmeras de lentes grandes. Na arquibancada, quais macacos vestidos e pintados de modo jocoso, todos brindam a vitória de seus campeões e a derrota dos adversários.
Inútil é o choro dos perdedores. Voltarão a enfrentar outros rivais, tentando justificar, atrás da bola hipnótica, seu fútil aziago. Fúteis, embolam-se em um jogo inexplicável, que tenta repetir a vida no gramado, para que as coisas permaneçam como sempre foram: na arena, gladiadores, na tribuna, governadores.
A Copa do Mundo aproxima os contrários e disfarça outras disputas fora de campo. Sobe a poeira. Mas o dinheiro é bom para todos. Cardumes de peixes variados, dilaceram o campeonato ludopédico: os grandes, com suas grandes bocas, amealham nacos maiores; os pequenos pegam o que sobra. Fora do estádio, conflitos raciais e religiosos abrem chagas e não há o apito de um árbitro. Manchada de sangue, ergue-se uma bandeira, mas ela ainda não anuncia justiça. Travas da barbárie, com traços de petróleo, diamantes e escravidão, fazem sulcos hemorrágicos sobre a pele de ébano. E pés duros e rachados – pés-de-moleque – que pisam a grama cirurgicamente aplicada sobre a base terraplanada sustentam corpos inertes, cabeças zonzas a girar olhos embasbacados em meio à massa multirracial. Spots, telões, placares luminosos preenchem um panorama surreal e trombetas infernais “vuvuzelam” os ouvidos mais calejados. Abafam-se os gritos da menina circuncidada e o esgüelar do gurizinho que perambulou no campo minado.
África, que é do Sul, do Saara, do “chifre”, das ilhas ocidentais; que é muçulmana, animista, cristã... o que mais? Mãe-chão de tantos povos e culturas, antiga porção do Éden. Testemunhou civilizações, reis e peões e, hoje, é o torrão de uma infinidade de pobres. Mas não lhe faltam opulentos – poucos, é verdade, mas que concentram força e riqueza pelo uso da truculência, do vício e da magia. Temidos, controlam tribos e países por meio de capangas e tropas. Alguém vê a poeira subir?
“Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas novas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação...!” – canta o poeta de Deus. No entanto, há pés que se especializaram na ligeireza, que lépidos e tocando apenas a superfície, não marcham com firmeza para o compromisso. São errantes e sonsos. No gramado do campo, os pés da agilidade existem para a exibição, não concretizam coisa alguma, o seu vínculo é com o espetáculo que, embora aproxime e confraternize, rara vez está a serviço de uma causa maior. Não sobem a um monte, mas na plana maciez de um palco verde, mais alienam do que integram. Vidas a eles se entregam, submissas e obcecadas ao ponto de por eles matar ou morrer.
Excepcionalmente, uma cabeça que se apóia sobre os pés de chuteiras reúne elementos para algo mais que a partida e a comemoração. Jogar e festejar são, muitas vezes, as únicas coisas que seus sujeitos alcançam fazer. São em tudo fracassados, menos entre os limites do campo. Vêm, muitos deles, de origem obscura e poucos percebem o quão luminosos poderiam se tornar. Não é assim com o goleiro herói transmutado em monstro carniceiro? Não foi assim com aquele que, sem brios, ostentava o título de “animal”?
Justiça seja feita, em todas as modalidades, a sedução da popularidade, riqueza e poder fora de controle podem entorpecer; não é algo exclusivo desta ou daquela atividade. Mas eis que o povo consagra determinados heróis, os quais, não são capazes de discernir a oportunidade que a vida lhes deu para servirem aos demais. E assim, vivem para si mesmos sem jamais se satisfazer.
O quanto implica colocar o pé no chão? Em conquistas muito além do que podemos imaginar. “Todo lugar que pisar a planta do vosso pé... será vosso”. Se a cada evento da humanidade, renova-se a expectativa de que, depois dele, tudo ficará melhor que dantes, que resultados se devem esperar de intermináveis horas e bilhões investidos em rolar a bola? Não importa se Dunga ou Diego ficam ou saem. Ou que destaque será homenageado. A pergunta a ser feita é: Com tudo isso, em que o mundo ficou melhor para as pessoas? O verdadeiro time dos sonhos é constituído daqueles que, com o pé no chão, vão “andando e chorando enquanto semeiam”, pois “voltarão com júbilo, trazendo os seus feixes”.