sexta-feira, 16 de maio de 2008

Sobre a doação de órgãos: Da obrigatoriedade à espontaneidade (Luciano Pereira Vergara, 1999)

Este artigo foi publicado em 1999, a propósito da lei 9.434, de fevereiro de 1997, regulamentada em junho do mesmo ano pelo decreto 2.268, adotando o conceito da doação presumida. A lei entrou em vigor em janeiro de 1998 e ocupou o noticiário durante meses. Uma conseqüência foi a obrigatoriedade da emissão de documentos de identidade declarando se o portador concorda com a doação de órgãos ou não.


Sobre a doação de órgãos: Da obrigatoriedade à espontaneidade

(Agência Soma)

A lei da doação compulsória de órgãos, recém aprovada no Senado — na verdade, uma invasão da livre vontade individual pelo estado, em nome do altruísmo — pode parecer uma lei magnânima em favor dos desfavorecidos pela vida. Serve-lhe de fachada o pretexto de suprir de órgãos aqueles que infelizmente deles necessitam. Distante da nobreza do gesto individual da doação, ao Estado não ocorre, porém, a sensatez de formular uma política educacional voltada para o altruísmo, capaz de incutir nas mentes o desejo de doar-se espontaneamente. Também não lhe ocorre que o “desmanche” de corpos pela via da coerção legal possa ferir consciências e afetos. Por outro lado, não há como não desconfiar das instituições públicas ou privadas que operacionalizarão o seqüestro de partes corpóreas, especialmente, se determinados órgãos alcançam maior valor no mercado paralelo.

As intervenções feitas em corpos têm sido, por muito tempo, alvo de especulações filosóficas e teológicas. Pode-se não querer subordinação à ética e à individualidade que revestem a preservação do corpo — vivo ou morto —, mas não se pode negar sua existência e sua importância histórica. Quem quiser, puder e souber manifestar em cartório sua vontade (como se fosse simples, por exemplo, a cidadãos que vivem em locais precários e desprovidos de recursos básicos da cidadania, firmar o seu desejo expresso), poderá não ter seu corpo violado. O que também significa que, novamente, apenas as camadas esclarecidas e com pleno acesso aos instrumentos da cidadania, terão a sua vontade respeitada. Quem não consentir mas não puder ou não souber como, não terá garantias de que, depois de morto, seus restos sejam preservados. Ouviremos, decerto, relatos, amiúde, de atos de corrupção ativa e passiva, quando familiares enlutados, inconformados com o saque a ser perpetrado em nome da lei, oferecerem propinas aos saqueadores ou, quando córneas consideradas nobres ou de rara beleza forem repassadas com ágio. Isto já ocorre sem essa legislação. Imagine-se o que poderá ocor-rer de posse da licitude do ato.

Não se questiona aqui o mérito da doação, que, aliás, é recomendável e para o que não há interdito bíblico ou moral. O que se indaga à consciência individual é se o Estado pode exercer tal domínio sobre a substância material do ser humano. Terá o Estado maior autoridade sobre a constituição do homem do que o próprio homem e sua família, após a morte? É lícito ao Estado determinar que tratamento dar-se-á ao corpo de um cidadão que falece? Poderá o Estado dar garantias de que esse seqüestro resguardará o respeito devido ao finado e a sua família? Aliás, como o Estado brasileiro pode dar quaisquer garantias em tantos outros assuntos, se muitos ítens básicos ainda não são de domínio de larga parcela da população?

As resistências que possam surgir à legislação da matéria, poderão ser de ordem moral ou religiosa, como os temores quanto aos níveis de consciência post mortem ou crenças quanto ao estado corpóreo no além-túmulo. Ninguém pode dizer que isto seja de menor importância num país onde é comum a violação de túmulos para finalidades místicas. Muito menos se pode tentar enfiar goela abaixo uma lei sobre tema tão controvertido, simplesmente, porque pode ser um instrumento fácil dentro de uma política de resultados, visto ser um crime a sua desobediência, mas que, nem de longe, representa um instrumento da razão sadia, que, via de regra, só é possível pela educação e conscientização.

Se o Estado quer a colaboração de seus cidadãos na busca de doadores, não a deveria obter pela coerção, mas através da conscientização, que, aliás, está atrasada, mas que teria resultados mais duradouros. Se deseja a boa vontade popular, por quê tentar obtê-la de modo arrogante? A inabilidade do Estado brasileiro para legislar sobre o que é, ou não, moral, fica patente em outras matérias. É o caso do combate ao contágio do vírus da AIDS, o HIV. Para diminuir o impacto da transmissão do vírus, o Estado vira “garoto-propaganda” da indústria de camisinhas, porque é menos complexo (e deve gerar impostos e dar empregos) do que conscientizar a sociedade sobre o erro (o que, insistentemente, não se quer denominar pecado) de uniões extraconjugais, da promiscuidade, do homossexualismo, etc. O Estado adverte sobre os riscos do alcoolismo, mas a legislação ainda é incapaz de promover os bons exemplos de sobriedade e freqüentemente se rende aos rendimentos da propaganda e da indústria do álcool. O mesmo poderíamos dizer do fumo, entre outros. De resto, fica bem claro que o Estado legisla melhor e mais rápido sobre a morte do que sobre a qualidade de vida. Ainda que pareça anacrônico, o direito à consciência e vontade é inalienável ao ser humano. Seria melhor que o Estado obtivesse a concordância do doador — em vida! — pela via mais razoável, isto é, o convencimento.

Tais questões também (e especialmente) pertencem à Igreja. Ela é estimulada por Deus a exercitar o altruísmo (Gálatas 6.9,10), em nome de sua fé em Cristo. É também a Igreja advertida a submeter-se às autoridades por “dever de consciência” (Romanos 13.1-7). Entretanto, a Igreja, não deve assistir calada aos excessos do poder humano, mas advertir ao povo (e às suas autoridades) acerca do pecado (Isaías 58.1).