sábado, 8 de novembro de 2008

Corrida presidencial

Artigo escrito para a Revista Soma, seção Conexão América Latina, em setembro de 2008, logo após o primeiro debate entre os candidatos à presidência dos EUA, Barack Obama (democrata) e John McCain (republicano).

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Tempo de liberdade

Luciano P. Vergara

Já não se vê o brilho cúprico da Estátua da Liberdade. Em outros tempos, ela sinalizou a “terra da liberdade” a milhões de imigrantes – na maioria, europeus. Chegavam em navios e alcançavam, pela foz do rio Hudson, o porto de Nova York, na expectativa de trabalho, comida e segurança. Hoje, quem bordeja a Staten Island numa balsa repleta de turistas, enxerga a “velha senhora” de metal totalmente esverdeada pela reação do cobre aos elementos do ar. A emoção dos refugiados do Velho Mundo é apenas uma recordação em preto e branco de um tempo que passou e, enquanto passava, foi mudando a cara dos Estados Unidos da América do Norte.

No presente, enquanto o tecido social dos EUA parece se desintegrar sob a corrupção e a perda das caras liberdades individuais, há muito consagradas pela primeira constituição republicana da história, a toque de um suposto combate ao terrorismo que onera os contribuintes, mas rende para alguns compadres empresários. No rastro de rombos deixados por enormes companhias do mercado financeiro, fragilizam-se as noções mais básicas de economia, segundo as quais não se dá dinheiro público a banco irresponsável.

Os candidatos que ora disputam a Casa Branca são inexperientes na condução de crises como a que vem se desenhando. Mas George W. Bush tem demonstrado que não é preciso entender de crise para ser presidente de uma superpotência. Mas alguém terá dito isso à crise? De costa a costa do território e por todo o planeta, apareceu a nova face americana, ainda indefinida entre o rosto mulato do democrata Barak Obama e a cara pálida do republicano John McCain. Se é cedo para dizer por qual deles o eleitorado yankee irá se decidir, já é tempo de reconhecer que, no trato, o manto de estadista veste melhor Obama, com o seu olhar altivo e sereno e o discurso bem articulado na voz bem colocada, do que no atarracado McCain. O republicano, esquivando-se de encarar o adversário, apenas realçava a noção generalizada de que é, além de orador medíocre, também uma pessoa “travada” em outros quesitos. Nesse pleito, só a rebeldia de alguns de seus parlamentares evitou que o Partido Republicano tivesse papel mais patético.

Esperado por bilhões de pessoas em todo o globo, o debate pouco acrescentou além da constatação da crise óbvia em que se meteu a superpotência do Norte, arrastando com isso as economias mundiais para o olho de uma tormenta. Os gastos militares no Iraque e no Afeganistão, um dos pontos mais controvertidos da disputa presidencial dos EUA, e o colapso das hipotecas, alimentadas pelo crescente endividamento interno, deram o tom do espetáculo. Quem esperava da pauta que fossem contempladas as questões latino-americanas viu-se obviamente frustrado, pois continua claro que o futuro governante da maior economia do planeta continuará a tratar a América Latina como agenda de segunda linha. Do alto de seu importante cargo e ocupações mais urgentes, restará ao novo chefe norte-americano permitir ao Brasil exercer uma morna liderança da região.

O que esperar, de imediato, nesse cenário? Faremos “tudo o que o “Mestre” mandar ou, em vez disso, já não existirá mais um “mestre”? Em um comentário na TV, o embaixador e ex-ministro Marcílio Marques Moreira declarou que o mundo esteve bi-polarizado, ficou mono-polarizado e está cada vez mais sem polarização, afinando-se com outras percepções que anunciam a relativização da liderança norte-americana. Sintomas disso são o declínio do padrão dólar na economia e a elevação de outras lideranças mundiais que vieram compartilhar a influência nos diferentes cenários.

O momento é fráctil e a conjuntura sofre um espasmo, modificando a silhueta política e alterando o eixo do poder. Num Brasil em que se formaram consideráveis reservas financeiras, vindas em parte das somas arrancadas aos contribuintes, em outra, de ganhos oriundos da balança comercial, idem do ‘boom’ que ‘surfou’ na alta do barril de óleo, a estabilidade política e a popularidade de seu chefe maior até encorajam desdenhar os efeitos – para uns, questão de tempo – da crise que prenuncia um temporal. Então, enquanto os EUA tentam limpar o olho do cisco incômodo, outras nações se reorganizam no tabuleiro. Não por acaso, Venezuela, Equador e Bolívia ousam um retrocesso autoritário em nome do proletariado e do nacionalismo.

A história é dinâmica e as regras mudam: “um dia é o da caça, outro do caçador”. Agora, “enquanto a onça bebe água”, a diplomacia brasileira tem tempo para ajudar na consolidação da liderança regional, tornando-a mais concreta e consistente. Mesmo com lacunas sociais e reformas pendentes, os brasileiros têm a possibilidade de embarcar no “trem da história”. Mas o melhor uso de seu potencial não ocorrerá se se repetir a velha fórmula imperialista. As recentes reações à construtora Odebrecht no Equador e Petrobras na Bolívia, por mais chauvinistas que tenham sido, servem de alerta ao Brasil. É possível ser internacionalmente relevante sem querer mandar no país dos outros, sem colonizar, sem reduzir as relações exteriores à mera exploração dos vizinhos.

Nas palavras de Jesus pela pena de Lucas: “Mais bem-aventurado é dar que receber” (Atos 20.35) está implícita a lição – dita franciscana – de que “é dando que se recebe”. Os povos mais sofridos dão sinal de que não têm mais esperança nas grandes economias, como ficou claro em Timor-Leste, Ruanda, Camboja e Uganda, entre outros. As ações “libertadoras” na Ásia Central têm acenado com uma democracia assentada em valores movediços que cheiram a carnificina. Por isso, o caminho mais seguro para uma liderança que faça amigos em vez de odiosos revanchistas é aperfeiçoarem-se os vínculos de solidariedade. Ser o maior entre os pequenos é melhor do que ser o menor entre os grandes. Mas isso tem que ser mais do que discurso oportunista, requer uma nova “tocha da liberdade”, sem o azinhave esverdeado pelo enferrujamento dos valores humanitários, mas cristalizados em projetos de longo prazo e posicionamentos políticos firmes.


Publicado na Revista Soma, edição nº 9; url: www.agenciasoma.org.br