Artigo publicado em O GLOBO (21/05/2011):
A DITADURA COR-DE-ROSA
GUILHERME FIUZA
O deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), uma espécie de gorila assumido, foi ao Senado protestar contra uma cartilha de prevenção à homofobia que o governo pretende distribuir. Acabou agredido pela senadora Marinor Brito (PSOL-PA), defensora dos homossexuais. Esses gorilas não sabem com quem estão se metendo. A tal cartilha, que está sendo preparada pelo MEC, será distribuída em escolas públicas, no ensino fundamental. A ideia é ensinar à criançada que namorar pessoas do mesmo sexo é saudável, ou seja, que ser gay é normal. Nada como um governo progressista, disposto a formar a cidadania sexual de seu povo.
Pelos cálculos do MEC, uma criança de sete anos de idade que chegar à escola e receber em mãos uma historinha de amor homossexual terá menor probabilidade de chamar o coleguinha de bicha, ou a coleguinha de sapatão. É difícil imaginar o que se passará na cabeça de cada uma dessas crianças diante do kit de orgulho gay do governo. Mas não é tão difícil imaginar o que se passa na cabeça do MEC, ou melhor, do ministro da Educação.
Assim como a quase totalidade da administração petista, o ministro da Educação, Fernando Haddad, só pensa naquilo — fazer política. Em 2010, no bicampeonato do vexame do Enem, ele estava trabalhando duro na campanha eleitoral de Dilma Rousseff. Sem tempo, portanto, para detalhes secundários, como a impressão trocada de gabaritos, que corrompeu a prova e infernizou a vida de mais de três milhões de estudantes. No ano anterior o Enem tinha naufragado após o vazamento da prova, e no ano seguinte Haddad foi premiado com a permanência no cargo pelo novo governo. Honra ao mérito. Nesse meio tempo, o país caiu 20 posições no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU para educação (ficando em 93º, atrás de Botswana). Mas o ministro tem sempre uma “pesquisa interna” para oferecer aos jornalistas — dos quais nunca se descuida —, mostrando ótimas avaliações do ensino público.
No governo da “presidenta”, que vive dessa mitologia do oprimido, a cartilha sexual do companheiro Haddad é mais um afago no mercado político GLS. Um mercado que não para de crescer. Ao lado do avanço nos direitos dos gays, legítimo e importante, a indústria do politicamente correto vai criando um monstro. Foi esse monstro que distribuiu tapas na turma do deputado Bolsonaro. É o monstro que transforma uma boa causa em revanche, histeria e intolerância. Que quer ensinar orgulho gay em escola primária. É a estupidez travestida de virtude.
O barraco entre o gorila e a serpente aconteceu na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Ali se discutia o projeto que transforma homofobia em crime. É um pacote de regras restritivas, como a que proíbe um pregador evangélico, por exemplo, de criticar o homossexualismo fora dos limites de sua igreja. Os generais de 64 (heróis de Bolsonaro) não fariam melhor. O totalitarismo, quem diria, também está saindo do armário.
A relatora do projeto é a senadora Marta Suplicy (PT-SP), que se retirou da sessão quando a confusão estourou. Ela teve sorte. Não de se livrar dos tapas, mas de escapar da sua própria lei. Menos de três anos atrás, ela fez insinuações de homossexualismo contra o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, seu adversário eleitoral na época. Talvez seja o caso de incluir uma ressalva no projeto, anistiando os companheiros progressistas que ferirem o orgulho gay por relevante conveniência política.
Mais do que nunca, a propaganda é a alma do negócio. Depois que Dilma Rousseff virou símbolo meteórico de afirmação feminina, ninguém mais segura os gigolôs da ideologia. Basta um slogan na cabeça e uma caneta na mão, e tem-se uma revolução de butique. Está prestes a ser aprovada a lei que obriga a fabricação de calcinhas e cuecas com etiquetas de advertência contra o câncer de próstata e de colo do útero, além de sutiãs com propaganda de mamografia. É incrível que ainda continuem vendendo chocolate sem uma tarja de advertência contra a gordura e as espinhas. É preciso ensinar a sociedade a ser saudável.
O Estado politicamente correto sabe o que é bom para você. Em nome da modernização dos costumes, assiste-se a uma escalada medieval de proibição da propaganda de produtos que fazem mal, e de obrigatoriedade de mensagens que fazem bem. Até a obra de Monteiro Lobato quase entrou na dança: ia ser crivada de notas explicativas a cada aparição de Tia Nastácia, em defesa da honra dos afrodescendentes. Os justiceiros do Conselho Nacional de Educação ainda não desistiram de corrigir o escritor.
É interessante ter um ex-BBB no Congresso defendendo os direitos dos homossexuais. Mas é estranho ter no reacionário Jair Bolsonaro a voz solitária contra os excessos da patrulha GLS. Talvez a consciência brasileira mereça, de fato, ser governada pelas cartilhas demagógicas do MEC.
GUILHERME FIUZA é jornalista.
O LEVIATÃ PEGA
Crônica publicada em O GLOBO (15/08/2010)
João Ubaldo Ribeiro
Acho que já falei aqui numa comadre minha que diz que tudo é trauma de infância. Inclino-me a concordar com ela e, muitas vezes, nem tenho de escarafunchar muito essa remotíssima fase de minha vida para descobrir a origem de certas inquietações do presente. O Leviatã é um exemplo claro, porque meu medo dele vem desde o tempo em que, no meio da livrama de meu pai, eu topava com as ilustrações de Gustave Doré para a Bíblia e lá estava o tremendo monstro, contra o qual, assegurava o texto, o bronze das espadas era palha, ou seja, não adiantava nada. E devo ter misturado isso com alguma outra ilustração, provavelmente do clássico de Thomas Hobbes intitulado Leviatã, com que também topei nessa época, tentei ler para ver se vencia o medo, não entendi nada, desisti e o trauma deve ter persistido, ou piorado.
Hobbes é comumente tido, numa simplificação bastante grosseira e mesmo injusta, como uma espécie de teórico do absolutismo. E foi assim que me falaram dele nas escolas. Para mim o Estado hobbesiano, onde o poder se concentra no que ele chama de “soberano” e o súdito não tem ingerência no governo, passou a ser definitivamente aquele monstro das ilustrações. Depois, com a leitura de 1984 e a chegada de um tempo onde, fotografados, filmados e gravados, estamos cada vez mais submetidos a alguma espécie de controle, ou pelo menos vigilância controladora, o bicho vem me assombrando bastante e devia assombrar vocês também, porque vamos facilitando, vamos facilitando e daí a pouco ele nos engole a todos.
E essa engolição não vai ter nem a colher de chá do Estado hobbesiano. Nele, de fato o soberano detinha todo o poder, mas também tinha o dever básico de dar segurança ao súdito, pois, afinal só ela conteria o lobo do homem e era para isso que o pacto social existia. Aqui no Brasil, o nosso Leviatã já engole mais de um terço do que ganham os pobres e remediados (e nada dos verdadeiramente ricos) e não dá segurança nenhuma. Se esta for entendida como algo além de garantias contra a violência e abranger, por exemplo, a saúde, sabemos que o monstro, além de comer todo o dinheiro que pode, obriga os súditos a contratar planos médicos privados e nem mesmo estes resolvem, pois o bicho permite que façam o que bem entendam, inclusive tungar safadamente os que há décadas pagam por eles os olhos da cara.
O Leviatã de Gustave Doré, se bem revejo na mente as gravuras da infância, tinha tentáculos semelhantes aos de um polvo. É uma boa imagem para o que nos acontece hoje em dia, a toda hora um novo tentáculo se estendendo sobre nós, uma chuva de normas, cartilhas, orientações, admoestações, avisos, cobranças, proibições, restrições, instruções e assemelhados, vinda aparentemente de mil direções, que ninguém conhece direito e a que todo mundo obedece sem questionar. Sabe-se, mais ou menos vagamente, da existência de agências reguladoras hoje muito ativas, tripuladas por sabe-se lá quem, todas empenhadas em emitir regras para a nossa conduta. Ninguém elegeu esse pessoal, ninguém foi nem ouvido nem cheirado quanto a sua nomeação (vai ver que alguns, ou todos, foram ouvidos preliminarmente no Congresso, mas isso e nada todo mundo sabe que quer dizer a mesma coisa, até porque muitos dos nomeados para as agências devem ter sido indicados por deputados ou senadores), mas eles fazem o que querem e, mesmo quando quebram a cara, quem paga o prejuízo somos nós.
Cabe recordar pela milésima vez, como uma espécie de dever cívico, aquela regulada que deram nos motoristas, obrigando todos a trafegar com um tal kit de primeiros socorros. Todos os donos de carro compraram o kit, que só tinha um fabricante, o qual, naturalmente, encheu o rabo de dinheiro, assim como, certamente, outros envolvidos na operação. Concluiu-se que o kit não valia nada e era até prejudicial, mas ninguém foi investigado e muito menos punido, os súditos morreram na grana que os espertalhões faturaram e ficou tudo por isso mesmo. Mais recentemente, veio o tal assento para crianças, que de novo beneficia fabricantes, ou fabricante, e é uma medida de meia pataca, porque não pode ser aplicada a táxis, ônibus e vans, além de causar problemas de vários tipos. Mas todo mundo se esquece disso, compra o raio da cadeirinha e segue obedecendo.
Torcer no futebol já está regulamentado, mas não é descabido prever que cada clube venha a ser obrigado a pagar danos morais ao juiz chamado de ladrão por seus torcedores. Curtir com a cara do perdedor, nem pensar. O técnico que ficar na beira do campo soltando palavrões também será multado e mal posso esperar o dia em que emanarão do banco instruções como “meu anjo, vê se te deslocas mais expeditamente!”. E o atacante vai pedir um cruzamento exclamando “alça-me o balão de couro, companheiro!”. Quanto a piadas, não só de futebol mas quaisquer outras, atualmente já proibidas em relação aos candidatos, certamente também serão objeto de restrições impostas pela necessidade de que vivamos numa sociedade absolutamente livre de discriminações ou preconceitos de toda espécie. Não pode piada que, de alguma forma, mostre qualquer categoria social ou humana sob uma luz considerada pejorativa. Ou seja, não pode piada nenhuma, mesmo porque as que se refiram a animais, como as de papagaio, estarão sujeitas ao crivo rigoroso do Ibama, pois nunca se sabe quando uma piada poderá induzir a um crime contra um animal protegido. Talvez se crie – e fica a sugestão, é mais uma porção de cargos para preencher – uma base nacional de piadas, cadastrando todas as permitidas, é só checar antes de contar. Agora que dá para comparar, o monstro de Gustave Doré não era tão feio assim, bons tempos.
João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro é escritor, jornalista, roteirista, professor e membro da Academia Brasileira de Letras.